Madalena Sá Fernandes cresceu rodeada de livros, por isso, optar pela carreira de escritora foi natural. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas e estava no processo de começar a escrever o seu primeiro livro, uma ficção, quando as dores da sua infância e juventude se interpelaram por entre as palavras. Madalena lançou 'Leme', em 2023, uma autoficção que retrata uma "história crua de uma relação tóxica" e que mostra "os pilares da resiliência de uma criança subjugada ao negro poder do seu padrasto". A criança era a própria Madalena. A obra conta a história de uma jovem que viu a violência doméstica de perto e que lhe deixou marcas.
O enorme sucesso de 'Leme' (que é também o nome de um bairro no Rio de Janeiro, onde a autora morou), chegou ao Brasil em 2025, motivo pelo qual a autora viajou até ao outro lado do Atlântico e onde viveu "uma das melhores semanas da sua vida".
Em 2024, surgiu 'Deriva', uma complicação das crónicas que a autora escreve para o Público.
Falámos com a escritora que nos contou sobre o seu percurso profissional, reflectiu sobre o flagelo da violência doméstica e ainda sobre os planos para o futuro.
Havia uma urgência em escrever sobre aquilo [violência doméstica] como se fosse uma catarse, uma purga, nomear aquele sofrimento, pôr por palavras.
Como é que surgiu a paixão pelos livros e pela literatura?
Toda a gente da minha família lê bastante, a minha mãe e o meu pai. A minha mãe é uma grande leitora. Todas as pessoas que me são mais próximas são todas grandes leitoras.
Cresci rodeada de livros e acho que isso ajudou bastante ao gosto. O papel da escola também foi muito importante, das aulas de português que eu adorava e que também foram fundamentais para o desenvolvimento desta paixão.
Quando é que a Madalena percebeu que queria fazer da literatura a sua vida?
Sempre percebi que escrever era o que dava mais prazer. Desde que aprendi a escrever que sabia que aquilo era o que eu gostava mais de fazer só que eu ainda não sabia que isso era efectivamente uma profissão possível de seguir. Desde sempre que sei que a minha paixão está na escrita. Mas foi só quando percebi que existiam mesmo pessoas que se dedicavam a isso. É um sonho mesmo muito antigo.
Quando tirou a licenciatura em Línguas, Literaturas e Culturas quais é que eram as expectativas profissionais?
Eu ainda estava muito sem expectativas, queria seguir a paixão e prolongar o que eu já sentia nas aulas de português, prolongar o estudo da literatura e das obras pelas quais eu era mais apaixonada. Queria aprofundar os conhecimentos em relação a esses autores. Já sabia que o que eu queria fazer de verdade era escrever só que eu acho que para escrever é preciso ler muito e, portanto, estava no curso com o objetivo de ler e aprender o mais possível.
Tive muito medo antes de o publicar. Das consequências, de como é que as pessoas poderiam reagir e gerou alguma ansiedade
O seu primeiro livro, 'Leme', foi editado em 2023. Como é que foi esse processo? Porque a Madalena tinha o objectivo de escrever outro tipo de livro.
Ia escrever uma ficção, um romance completamente diferente do 'Leme'. Mas a história do 'Leme' que é minha, da minha infância e adolescência, acabou por ar à frente do outro projeto que eu tinha.
© Reprodução Madalena Sá Fernandes
Como é que percebeu que era sobre a sua história que queria escrever?
À medida que eu escrevia o outro livro, a personagem principal do 'Leme', que é a figura do padrasto, estava a aparecer sobre forma de outras personagens no outro livro. Eu percebi que havia uma urgência em escrever sobre aquilo. Escrevia o que eu sentia e que estava a fazer sentido, quase como se fosse uma catarse, uma purga, nomear aquele sofrimento, pôr por palavras.
Ao mesmo tempo esta escrita tinha com uma forte inclinação literária. Queria que fosse literatura, isso para mim era fundamental.
Houve alguma receio que lhe ou pela cabeça? Afinal, era a sua história mas também a da sua família.
Tive muito medo antes de o publicar. Das consequências, de como é que as pessoas poderiam reagir e gerou alguma ansiedade, eu diria que talvez até mais ansiedade do que medo. Depois rapidamente se dissipou quando foi publicado e fiquei muito feliz com isso.
O processo de escrita trouxe-lhe muito sofrimento? Lembrava-se de tudo o que conta no livro?
As imagens relatadas são as que eu tinha mais presentes na memória, mas também é uma autoficção. Tem muito de trabalho literário sobre as imagens. Foi mais libertador do que sofredor o processo.
Não tinha o objetivo de fazer um panfleto, mas também acho interessante esse aspeto de dar a mão a outras mulheres que em por situações dessas [violência doméstica]
Alguma vez pensou no impacto que escrever um livro sobre a sua vida teria? O facto de dar várias entrevistas, de ter que falar de episódios dolorosos tantas vezes?
Não pensei nisso mas está a acontecer e não me incomodo nada. O assunto ficou, de certa forma, arrumado. Nunca está curado mas falar sobre isso não me ativa a nenhum tipo específico de sofrimento. Pelo contrário, até apazigua, tenho encontrado bastante conforto e apoio.
A Madalena disse numa entrevista que o seu objectivo com este livro não era ser uma ativista na questão da violência doméstica.
O meu objetivo era escrever um livro. Era fazer um objeto literário, mas acabou por acontecer por ser o tema que é que. O livro também teve esse impacto e, honestamente, eu acho isso muito importante e também muito bonito. Não tinha o objetivo de fazer um panfleto, mas também acho interessante esse aspeto de dar a mão a outras mulheres que em por situações dessas.
O Brasil faz parte da minha geografia afetiva e da minha história. Fechei um ciclo a ir lá lançar o livro, é comovente
Como é que lida quando alguém a aborda e conta a sua história de vida relacionada com a violência doméstica?
Fico triste por ser um assunto que ainda está muito na ordem do dia. Uma epidemia, quer neste país, quer, por exemplo, no Brasil e também por todo mundo. Ao mesmo tempo agradeço a partilha das pessoas, o facto de se sentirem à vontade para partilharem comigo. Embora não seja terapeuta o que eu faço é recomendar precisamente terapia para ajudar a lidar. Fico feliz que o meu livro toque as pessoas nesse sentido.
Os números de violência doméstica em Portugal são muito altos. O que é que a Madalena acha que devia ser feito, em sociedade, para, de certa forma proteger as mulheres?
Não é benéfico penalizar ou culpar as mulheres neste aspeto, é importante continuar a denunciar os agressores, falar o mais possível. Difundir para a importância da denúncia, mas também oferecer alternativas porque, muitas vezes, as pessoas nessas situações, especialmente nas classes mais baixas, sentem que não há alternativa, e já há muitas associações excelentes a promover isso. Falta uma coisa numa escala maior, haver apoio psicológico para as vítimas e até para os agressores.
Haver uma conversa enquanto sociedade, muito séria sobre este assunto e sobre tudo o que está perpetuar esta visão de violência sobre os corpos das mulheres, sobre o pensamento das mulheres, sobre o desejo das mulheres. Isso está a acontecer agora também nos jovens, através dos chamados 'influenciadores' e de pessoas que propagam estes discurso misóginos e machistas. Acho que é muito preocupante, tem que haver um grande alerta enquanto sociedade em vários campos para não deixar que esse discurso se perpetue.
O 'Leme' tem sido um grande sucesso desde o seu lançamento e isso permitiu-lhe lançá-lo no Brasil, um país especial para si e para a sua história.
O 'Leme' também vai sair em mais países, mas confesso que o Brasil foi o que me deixou mais feliz de todos. Faz parte da minha geografia afetiva e da minha história, foi um país fundamental para mim e para a história do livro. Leme também é um bairro no Rio de Janeiro. Fechei um ciclo a ir lá lançar o livro, é comovente. É bom ver o livro a ir além-fronteiras, fico muito feliz. Este ano vai sair também na Argentina e na Dinamarca.
Em 2024 lançou o seu segundo livro, de crónicas, intitulado 'Deriva'. Gosta mais de escrever o quê?
Escrever crónicas faz parte da minha rotina, já está muito no 'automático'. É fundamental também para mim, ajuda-me a pensar sobre o mundo, a ter ângulos novos, ter uma voz que pode variar mais humorística, concentrar-me em coisas mais pequeninhas ou mais irrelevantes. Mas a literatura, a escrita de um livro é sempre um processo mais doloroso, mais profundo, mais intenso, é um processo mais transformador.. É aquilo que eu quero fazer da vida.
As crónicas permitem-me descansar um bocadinho dessa escrita mais exigente.
© Penguin Random House
O seu próximo livro é também uma autoficção. O que é que nos pode revelar?
Vai ter um lado de autoficção, mas também é um livro que é difícil de definir. Não consigo inseri-lo em nenhuma categoria. E por isso vai desafiar também as formas, mas para mim essa questão não é tão relevante. Terá um bocadinho autoficção, um bocadinho de ensaio, vai ser uma mistura.
A sua mãe apoiou-a muito na escrita deste livro?
Na fase de publicar o 'Leme' o apoio dela foi fundamental porque tirou um peso enorme de cima e senti que se tinha o apoio dela, estava feito. Foi maravilhoso sentir isso.
Há uns meses a Madalena ou por um episódio menos feliz [o escritor João Pedro George fez comentários machistas sobre ela] como é que lidou com isso?
Foi o que eu escrevi na altura e, para mim, esse assunto está ultraado.
É preciso ter cuidado para que a velocidade das redes não se imponha ao espaço sagrado de lentidão da literatura
O que é que a Madalena quer para o seu futuro profissional?
Estou a fazer um mestrado, gostava de seguir para doutoramento. Quero escrever várias coisas, gostava de escrever uma peça de teatro, um livro infantil, uma ficção. Ideias não me faltam. Vou continuar com as crónicas. Tudo o que seja relacionado com a escrita me interessa.
Hoje em dia existe uma grande promoção da literatura nas redes sociais, nomeadamente no TikTok. Como é que a Madalena, sendo uma escritora desta geração, vê isso?
Tem sido muito bom para os meus livros e para os livros no geral. E acho que é uma questão de ser o tempo em que estamos. Depois tem o reverso da medalha que é esse equilíbrio entre estar constantemente nas redes, as redes têm uma velocidade super sónica e a escrita e a leitura não se coadunam com isso. A escrita e a leitura precisam de lentidão, portanto são o espaço da lentidão.
É preciso ter cuidado para que a velocidade das redes não se imponha ao espaço sagrado da lentidão da literatura. Acho muito bom que se fale de livros nesses meios, mas que sirvam para catapultar para esse outro lugar de lentidão e não deixar que um devore o outro.
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